Reconhecimento de uniões estáveis simultâneas
30/08/2011 12:50
Jurisprudência STJ - Direito de família - Reconhecimento de uniões estáveis simultâneas Impossibilidade - Exclusividade de relacionamento sólido
EMENTA
DIREITO DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS. IMPOSSIBILIDADE. EXCLUSIVIDADE DE RELACIONAMENTO SÓLIDO. CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA JURÍDICA DA UNIÃO ESTÁVEL. EXEGESE DO § 1º DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 1. Para a existência jurídica da união estável, extrai-se, da exegese do § 1º do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, o requisito da exclusividade de relacionamento sólido. Isso porque, nem mesmo a existência de casamento válido se apresenta como impedimento suficiente ao reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato, circunstância que erige a existência de outra relação afetiva factual ao degrau de óbice proeminente à nova união estável. 2. Com efeito, a pedra de toque para o aperfeiçoamento da união estável não está na inexistência de vínculo matrimonial, mas, a toda evidência, na inexistência de relacionamento de fato duradouro, concorrentemente àquele que se pretende proteção jurídica, daí por que se mostra inviável o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. 3. Havendo sentença transitada em julgado a reconhecer a união estável entre o falecido e sua companheira em determinado período, descabe o reconhecimento de outra união estável, simultânea àquela, com pessoa diversa. 4. Recurso especial provido. (STJ – REsp nº 912.926 – RS – 4ª Turma – Rel. Min. Luiz Felipe Salomão – DJ 07.06.2011)
ACÓRDÃO
Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Ministro Raul Araújo, acompanhando o Relator, e os votos dos Ministros Aldir Passarinho Junior e João Otávio de Noronha no mesmo sentido, a Turma, por unanimidade, conheceu do recurso especial e deu-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo (voto-vista), Aldir Passarinho Junior e João Otávio de Noronha votaram com o Sr. Ministro Relator.
Não participou do julgamento a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti.
Brasília (DF), 22 de fevereiro de 2011 (data do julgamento).
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO– Relator.
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. M. de O. B. ajuizou ação declaratória de reconhecimento de união estável cumulada com pedido de ressarcimento por danos materiais e extrapatrimoniais em face da sucessão de P. R. dos S. O.. Alega a requerente ter conhecido o falecido em agosto de 1991, sendo que em meados de 1996 surgira o animus de convivência afetiva sob a mesma residência, com a intenção de constituir família, razão pela qual foram praticados vários atos para a consecução desse desiderato, como aquisição de linha telefônica, locação de imóvel e edificação imobiliária na qual o casal iria residir, não fosse o falecimento do varão.
Sustenta a requerente que, para sua surpresa, fora ajuizada anteriormente ação declaratória de reconhecimento de união estável proposta por V. L. da C., atuando em conluio com a filha do falecido e também advogada, P. O. M., com o único escopo de lesar direito alheio, no sentido de receber seguro de vida deixado por P., bem como pensão mensal, porquanto o autor da herança era aposentado da Prefeitura Municipal de Porto Alegre/RS.
Requereu, assim, além do reconhecimento da união estável, o ressarcimento pelos réus dos valores recebidos indevidamente a título de seguro de vida e pensão por morte.
O Juízo de Direito da 2ª Vara das Famílias e Sucessões da Comarca de Porto Alegre julgou improcedentes os pedidos deduzidos na exordial (fls. 784/796).
Em grau de apelação, todavia, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, reformando a sentença monocrática, julgou parcialmente procedente o pedido para reconhecer a união estável entre a autora e o falecido, nada obstante haver reconhecimento pretérito de união estável entre o de cujus e uma das rés, em período concomitante.
O acórdão recebeu a seguinte ementa:
APELAÇÃO CÍVEL. 1) UNIÃO ESTÁVEL PARALELA A OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO. O anterior reconhecimento judicial de união estável entre o falecido e outra companheira, não impede o reconhecimento da união estável entre ele e autora, paralela àquela, porque o Direito de Família moderno não pode negar a existência de uma relação de afeto que também se revestiu do mesmo caráter de entidade familiar. Preenchidos os requisitos elencados no art. 1.723 do CC, procede a ação, deferindo-se à autora o direito de perceber 50% dos valores recebido a título de pensão por morte pela outra companheira. 2) RESSARCIMENTO DE DANOS MATERIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS. Descabe a cumulação de ação declaratória com ação indenizatória, mormente considerando-se que o alegado conluio, lesão e má-fé dos réus na outra ação de união estável já julgada deve ser deduzido em sede própria. Apelação parcialmente provida. (fl. 872)
Os embargos de declaração opostos foram acolhidos apenas para que o acórdão coincidisse com as notas taquigráficas (fls. 896/900).
Sobreveio recurso especial, arrimado nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional, no qual se alega, além de dissídio jurisprudencial, ofensa aos arts. 1.723, § 1º, combinado com o art. 1.521, ambos do Código Civil, ao argumento de que não seria possível o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. Ademais, a recorrente teria em seu favor sentença declaratória com trânsito em julgado, tendo sido reconhecida sua convivência em união estável com o de cujus, razão pela qual o acórdão recorrido também teria violado o art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil.
Contra-arrazoado (fls. 961/968), o especial foi admitido (fls. 987/989).
O Ministério Público Federal, mediante parecer subscrito pelo i. Subprocurador-Geral da República Fernando H. O. de Macedo, opina pelo provimento do recurso especial (fls. 1.001/1.002).
É o relatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. Ressalto, de saída, a premissa a partir da qual foi construído o raciocínio para desate da controvérsia. Não se está analisando a possibilidade de, no mundo dos fatos, haver mais de uma união com vínculo afetivo e duradouro, com o escopo de constituição de laços familiares, o que evidentemente acontece.
O que se está a perquirir é se, ainda que de fato haja vínculos afetivos desse jaez, o ordenamento jurídico confere-lhes alguma proteção. Vale dizer, indaga-se se as relações afetivas com esses caracteres, simultaneamente perfectibilizadas, recebem, não de fato, mas juridicamente, o predicativo de "união estável".
Isso porque é de tempos conhecida a máxima kelseniana, segundo a qual "a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser" (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. [Tradução João Batista Machado]. São Paulo: Martins Fontes, 1998).
Tal perspectiva é absolutamente essencial ao entendimento do fenômeno jurídico, porque se percebe que a mente humana, a sociedade e a complexa cadeia de relações sociais são muito mais inventivas que o criador do direito, o qual, ordinariamente, verificado o fenômeno social no mundo dos fatos, vem a reboque.
Por isso que a situação fática perante a qual se depara o observador, o aplicador do direito, pode ou não ser tutelada pelo ordenamento jurídico, quer proibindo-a, quer permitindo-a e lhe conferindo efeitos jurídicos, quer, ainda, a ela (à situação fática) sendo indiferente.
Não por acaso a comezinha notícia histórica acerca da criação de conceito básico para o direito privado - a relação jurídica - dá conta da existência de relações sociais parcial ou totalmente desprovidas de juridicidade, como bem asseverou Savigny, ainda no século XIX:
"Em conseqüência, toda relação de direito compõe-se de dois elementos: primeiro, uma determinada matéria, a relação mesmo; segundo, a idéia de direito que regula essa relação. O primeiro pode ser considerado como elemento material da relação de direito, como um simples fato; o segundo, como o elemento plástico que enobrece o fato e lhe impõe a forma jurídica. Todavia, nem todas as relações de homem a homem entram no domínio do direito, nem todas têm necessidade, nem todas são suscetíveis de serem determinadas por uma regra de tal gênero. Cabe, pois, distinguir três casos: ora a relação está inteiramente dominada por regras jurídicas, ora está somente em parte, ora escapa a elas por completo. A propriedade, o matrimônio e a amizade podem servir como exemplo dos três diferentes casos" (SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Da vocação no nosso tempo para a legislação e a ciência do direito. APUD. AMARAL. Francisco. Direito civil: introdução. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 162).
Com efeito, afigura-se-me imprópria, porque desprovida de base teórico-jurídica, a assertiva segundo a qual fenômenos sociais em evidência não podem deixar de estar sob a tutela do direito. Ao contrário, a tutela jurídica deve ser extraída do próprio ordenamento jurídico (dever-ser) e não dos fatos sociais (ser), muito embora o primeiro somente se revele como uma realidade quando de encontro com o segundo.
Como sói acontecer, primeiro nasce a família para só depois existir o direito de família.
Isso porque a apreensão do fato social pela norma - a transformá-lo, por consequência, em fato jurídico - assim ocorre em razão de uma opção criacionista sobretudo do parlamento, a qual, de regra, mas não sempre, guarda relação com a estatura do bem a ser protegido, razão pela qual muitos vínculos sociais, como os acima citados, não recebem proteção normativa, ao passo que alguns meros fatos da natureza, como o simples decurso do tempo, geram consequências jurídicas relevantes.
Nessa linha de raciocínio, a inexistência de tutela de valores sociais que, por algum fundamento metajurídico, deveriam estar protegidos pelo ordenamento, é questão de índole política e não judiciária, em respeito mesmo à máxima republicana da separação dos poderes.
E não é simplesmente emprestando ao direito "velho" o epíteto de "moderno", que tal ou qual valor social estará protegido, senão mediante reformas legislativas pelos meios ordinariamente concebidos.
3. A partir dessa premissa jurídico-filosófica, não vislumbro como - ao menos ainda - haver tutela jurídica de relações afetivas plúrimas, denominadas "uniões estáveis paralelas".
3.1. A matriz normativa da união estável reside no art. 226 da Constituição Federal, o qual, para melhor compreensão, transcrevo na íntegra:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Percebe-se, com efeito, que a Carta Cidadã de 1988, em obséquio ao pluralismo democrático, concebe como entidade familiar, exemplificadamente, o vínculo afetivo decorrente do casamento - civil ou religioso -, da união estável e das relações monoparentais.
Nada obstante, é de se ressaltar que a Constituição Federal adotou uma pluralidade apenas qualitativa no que concerne às diversas formas de família, mas não quantitativa, como pretende demonstrar parte da doutrina e jurisprudência, e, nesse sentido, conferiu ao legislador ordinário o mister de dar densidade normativa aos conceitos e valores em si fugidios, como é o caso do instituto da "união estável".
Nesse passo, extrai-se do Código Civil de 2002 (o qual, em essência, reproduz os princípios das leis pretéritas sobre a união estável) a opção legislativa conceitual e protetiva da união estável, a excluir desse âmbito, em outro passo, o concubinato, verbis:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
(...)
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.
3.2. Doutrina e jurisprudência, no mais das vezes, têm debatido sempre em torno da existência ou inexistência de impedimentos para o casamento, como sendo tal circunstância um dos pontos centrais para a determinação da união estável.
Extrai-se, destarte, do sistema criado pelo legislador, que, em se tratando de união estável, a exclusividade de relacionamento sólido é condição de existência desse vínculo - juridicamente e não faticamente -, sem a qual não se haverá falar nesse instituto nobre, conformador mesmo da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
Poder-se-ia argumentar que a lealdade, tal como prevista no art. 1.724 do CC/02, é mero dever decorrente da união estável, mas longe está de ser elemento essencial à sua existência. Tal como no casamento, a constituição de vínculos afetivos extramatrimoniais não o desnaturaria como tal; tratar-se-ia de mera quebra do dever de fidelidade (art. 1.566, inciso I).
Rechaço tal assertiva, primeiramente porque, diferentemente da união estável, que é um vínculo fático com consequências jurídicas, o casamento é, acima de tudo, um vínculo jurídico, estabelecido mediante ato registral, não se desfazendo senão nas hipóteses consagradas no Código, quais sejam, a morte do cônjuge ou o divórcio, mercê do art. 1.571, § 1º, do Diploma de 2002.
Ademais, quando se cogita de reconhecimento de uniões estáveis plúrimas, não se está a pisar na seara da mera infidelidade ou deslealdade, que, de resto, podem ser quebradas até mesmo com simples relacionamentos eventuais, inaptos, portanto, a caracterizar união estável.
Em realidade, está-se diante de relacionamentos duradouros simultâneos, nos quais, ao contrário, nem sempre se verifica qualquer deslealdade, o que ocorre quando, por exemplo, um dos conviventes conhece a existência do segundo relacionamento e a ele não se opõe.
De outra parte, à indagação acerca do maior óbice ao reconhecimento de uma união estável entre pessoas sem qualquer parentesco, provavelmente responder-se-ia que é a existência de casamento.
Porém, não o é, porquanto a ausência de convivência duradoura (separação de fato) é motivo suficiente para afastar tal óbice, razão pela qual é esta (a convivência de fato) o maior impedimento ao reconhecimento da união estável, abstraindo-se, por óbvio, os impedimentos decorrentes de parentesco.
Assim, para a existência jurídica da união estável, extrai-se o requisito da exclusividade de relacionamento sólido da exegese do § 1º do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, dispositivo esse que deve ser relido em conformidade com a recente EC n.º 66 de 2010, a qual, em boa hora, aboliu a figura da separação judicial:
§ 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. (grifo nosso)
3.3. Dessarte, nem mesmo a existência de casamento válido se apresenta como impedimento suficiente ao reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato, circunstância que erige a existência de outra relação afetiva factual ao degrau de óbice proeminente à nova união estável, mais relevante que a própria existência do casamento.
Com efeito, a pedra de toque para o aperfeiçoamento da união estável não está na inexistência de vínculo matrimonial, mas, a toda evidência, na inexistência de relacionamento de fato duradouro, concorrentemente àquele que se pretende proteção jurídica, daí porque se mostra inviável o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. Não fosse por isso, também não seria a separação de fato conditio sine qua non para o reconhecimento de união estável de pessoa casada.
Em suma, se quando inexistente separação de fato - ou seja, havendo convivência duradoura - não se pode reconhecer a união estável de pessoa casada, também não é viável o reconhecimento de união estável concomitantemente à outra, em relação à qual restou comprovada a convivência duradoura, sob pena de conferir aos conviventes em união estável maiores direitos que aos cônjuges.
3.4. Doutrina de relevo no direito de família, embora o tema não seja nem de longe pacífico, tem proclamado o mesmo entendimento:
"A lei abjeta a relação extramatrimonial simultânea com a união legítima, como afasta duas uniões legítimas ou informais, salvo que exista separa judicial ou de fato, pois neste caso não persiste o dever de fidelidade.
Não constitui família aquele que prossegue residindo com a esposa e com os filhos conjugais, pois é pressuposto da vontade de formar família estar desimpedido para formalizar, pelo casamento ou pela via informal da união estável, a sua efetiva entidade familiar. Aliás, querendo constituir família com a amante, tudo o que o bígamo precisa fazer é romper apenas de fato a sua relação com a primeira mulher, ficando até dispensado da formal separação judicial, pois com este simples gesto de romper fatualmente o passado para assentar no presente, relação de fidelidade e exclusividade com a sua nova mulher é gesto suficiente para concluir que fortaleceu os seus esforços, e que concentrou seus desejos e esforços numa nova entidade familiar" (MADALENO, Rolf. A união (ins)estável (relações paralelas). In. Adv. Advocacia dinâmica. Seleções Jurídicas. Julho de 2005. p. 57).
No mesmo sentido é o magistério de Marco Aurélio S. Viana (Da união estável. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 92).
3.5. Esse entendimento, muito embora por fundamentos diversos, também foi sufragado no âmbito da e. Terceira Turma:
União estável. Reconhecimento de duas uniões concomitantes. Equiparação ao casamento putativo. Lei nº 9.728/96.
1. Mantendo o autor da herança união estável com uma mulher, o posterior relacionamento com outra, sem que se haja desvinculado da primeira, com quem continuou a viver como se fossem marido e mulher, não há como configurar união estável concomitante, incabível a equiparação ao casamento putativo.
2. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 789293/RJ, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/02/2006, DJ 20/03/2006 p. 271)
Direito civil. Família. Paralelismo de uniões afetivas. Recurso especial. Ações de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes.
Casamento válido dissolvido. Peculiaridades.
- Sob a tônica dos arts. 1.723 e 1.724 do CC/02, para a configuração da união estável como entidade familiar, devem estar presentes, na relação afetiva, os seguintes requisitos: (i) dualidade de sexos;
(ii) publicidade; (iii) continuidade; (iv) durabilidade; (v) objetivo de constituição de família; (vi) ausência de impedimentos para o casamento, ressalvadas as hipóteses de separação de fato ou judicial; (vii) observância dos deveres de lealdade, respeito e assistência, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos.
- A análise dos requisitos ínsitos à união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre outros.
- A despeito do reconhecimento – na dicção do acórdão recorrido – da “união estável” entre o falecido e sua ex-mulher, em concomitância com união estável preexistente, por ele mantida com a recorrente, certo é que já havia se operado – entre os ex-cônjuges – a dissolução do casamento válido pelo divórcio, nos termos do art.
1.571, § 1º, do CC/02, rompendo-se, em definitivo, os laços matrimoniais outrora existentes entre ambos. A continuidade da relação, sob a roupagem de união estável, não se enquadra nos moldes da norma civil vigente – art. 1.724 do CC/02 –, porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os companheiros.
- O dever de lealdade “implica franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade. Numa relação afetiva entre homem e mulher, necessariamente monogâmica, constitutiva de família, além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural” (Veloso, Zeno apud Ponzoni, Laura de Toledo. Famílias simultâneas: união estável e concubinato. Disponível em https://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=461. Acesso em abril de 2010).
- Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade – para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.
- As uniões afetivas plúrimas, múltiplas, simultâneas e paralelas têm ornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos, entre eles, aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses.
- Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade.
- Emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos jurídicos inerentes à união estável, implicaria julgar contra o que dispõe a lei; isso porque o art. 1.727 do CC/02 regulou, em sua esfera de abrangência, as relações afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou união estável pré e coexistente.
Recurso especial provido.
(REsp 1157273/RN, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/05/2010, DJe 07/06/2010)
4. No caso concreto, muito embora o Tribunal a quo não tenha negado a existência de união estável reconhecida por sentença trânsita, julgou procedente o pedido de reconhecimento de nova união estável em benefício da recorrida, consoante os fundamentos que ora sintetizo:
"Mesmo que sete dos oito filhos do réu confirmem a existência de convivência marital entre PAULO e a ré VERA, e exista, repito, farta prova oral confirmando o que já fora declarado por sentença, ou seja, que o falecido e VERA viveram por dez anos como marido e mulher, com endereço comum, sendo esta considerada sua esposa (conforme se vê dos depoimentos de PAULO F., fls. 491 e s.; SANDRA, fls. 496 es.; ERICO, fls. 506 e s.; JURACI, fls. 511 e s.; EDITE - mãe de PAULO, fls. 514 e s. -; JOÃO CARLOS, fls. 517 e s.; JAIR, fls. 528 e s.; DOUGLAS, fls. 570 e s. e JURUÍ, fls. 576 e s.), também é farta a prova oral confirmando a existência da união estável paralela entre PAULO e MARISA, a autora.
(...)
Assim, ante as concludentes provas documental e oral, verifica-se que estão presentes os requisitos elencados no art. 1.723 do Código Civil para o reconhecimento da união estável mantida entre a autora e PAULO, o qual não pode ser afastado por ter sido sua existência paralela a outra união estável reconhecida, sob pena de configurar enorme injustiça e desproteção a uma entidade familiar que se estabeleceu nos mesmos moldes que a outra" (fls. 875/876).
Como ressaltado inicialmente no voto, conquanto não se desconheça a possibilidade de, factualmente, haver relacionamento afetivo com traços de união estável, concomitantemente a outro com as mesmas características, o que é relevante ao desate da controvérsia, a meu visto, é saber se o ordenamento jurídico confere-lhe alguma proteção jurídica, proteção essa que, como fundamentado alhures, não se vislumbra no arcabouço do direito posto.
Com efeito, havendo sentença transitada em julgado a reconhecer a união estável entre o falecido e sua companheira, em determinado período, descabe o reconhecimento de outra união estável, simultânea àquela, com pessoa diversa, devendo o pedido inicial ser, portanto, julgado improcedente.
5. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial para, restabelecendo integralmente a sentença, julgar improcedente o pedido autoral.
Custas e honorários advocatícios conforme pronunciamento de primeiro grau.
É como voto.
VOTO-VOGAL
O SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO:
Acompanho o brilhante e bem fundamentado voto do Sr. Ministro Relator, pela impossibilidade de reconhecimento de uniões estáveis paralelas.
Conheço do recurso especial e dou-lhe provimento.
VOTO
EXMO. SR. MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR:
No caso da união estável, reconhecendo-se uma união estável, não pode haver, ao mesmo tempo, outra união estável, por ser incompossível a compatibilização das duas.
Parece-me que o voto do eminente Ministro Relator, com todos os subsídios e doutrinas que trouxe, agora secundado pelo voto do Sr. Ministro Raul Araújo Filho, põe uma pá de cal sobre essa questão.
Acompanho o voto do Sr. Ministro Relator, dando provimento ao recurso especial.
Fonte : Grupo Serac
Publicado em 30/08/2011
Extraído de Recivil